Friday, January 31, 2014

Norte-americano cria lista com motivos pelos quais desconfia das opiniões de gringos que viviam no Brasil





 
Em 2001, defendi minha tese de mestrado, “Gringos”, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional. Modéstia aparte, pelo que eu saiba, ela é até hoje a única tentativa de olhar para os anglo-americanos enquanto imigrantes ao Brasil.

No decorrer da minha pesquisa, entrevistei  57 gringos anglofalantes, residentes na Cidade Maravilhosa. O corte analítico era isto: para ser entrevistado, a pessoa em questão tinha que estar vivendo no Brasil por pelo menos um ano, tinha que falar português, e tinha que ter nenhum plano de regresso a seu país de origem logo em seu horizonte de possibilidades. Tive que adotar esses critérios, pois os gringos anglofalantes quase nunca se consideram como “imigrantes”: imigrante é aquele asiático, africano, ou latino americano que vive nos países de origem deles. Um americano radicado no Brasil faz 25 anos (como eu) é um “expatriado” e nunca um membro da nação onde mora, muito menos um aspirante a cidadão.

Descobri muito sobre os gringos, mas a coisa mais importante que apreendi era como era comum – e geralmente não reflexivo e superficial – a maioria das opiniões formadas que essas pessoas tinham sobre o Brasil, particularmente enquanto comparado com seus países de origem. Mais preocupante, percebi como meus próprios pensamentos teriam sido influenciados por esses preconceitos fáceis.
A partir daquele momento, nunca mais tomei qualquer coisa que um gringo falasse como observação inocente ou objetiva sobre o Brasil. As comparações entre o Brasil e seus países de origem costumam ser particularmente carregadas de posições ideológicas e tramas psicológicas não examinadas. Isto não quer dizer que tudo que gringo fala é uma merda: estou apenas afirmando que nenhuma observação do Brasil, feito por imigrante ou visitante, vem desacompanhada de crenças embutidas sobre a natureza do mundo e o local devido dos brasileiros (e dos gringos) nele.

Faz mais ou menos 4 semanas, está aparecendo em minhas redes de sociabilidade digitalizadas um artigo escrito por um tal  de “Mr. X”, que vivia por três anos em SãoPaulo e aparentemente não gostou muito da experiência. Não conheço pessoalmente o Mr. X, mas pelo pouco que transpira de sua lista, parece ser um caso típico de gringo que casou com brasileira, imigrou em função desse casamento, nunca se encaixou nessa sociedade e, desfeito o casamento, voltou para os EUA xingando tod@s pois, obviamente, o desastre não podia ter nada a ver com ele mesmo enquanto pessoa: o culpado tinha que ser o Brasil.

A  lista do  Mr. X continua circulando, porém, entre meus amigos brasileiros – geralmente os da classe média p’ra cima – juntos com uma série de comentários sobre como o gringo acertou na mosca. Para mim, isto era mais que previsível. Eu estava até sentindo falta daquilo que minha esposa, a antropóloga Ana Paula da Silva, chama de “o complexo dos vira-latas”: a profunda crença brasileira que esse país é terminalmente condenado a uma inferioridade sócio-cultural-político-econômico enquanto comparado com a Europa Ocidental e os EUA. Essa síndrome tradicional tinha sido temporariamente apagada pelos gritos de “Anauê!” e outras manifestações do nacionalismos barato, inculcadas pela euforia frente ao relativo sucesso econômico do Brasil durante a primeira década do Século XXI. Não é de surpreender, porém, que frente aos tumultos do inverno e a desaceleração da economia, estamos de volta ao bom e velho pessimismo sobre o Brasil. 

É bom lembrar nessas horas o que eu apreendi em meu estudo sobre os migrantes anglofalantes: nenhum deles (inclusive eu) fala inocentemente sobre o Brasil, particularmente quando compara o país com seus países de origem.  E, com o intuito de explorar essa descoberta com vocês que, como eu, devem estar encontrando a lista de Mr. X em toda parte, escrevo minha própria lista. Essa é intitulada “por que devemos desconfiar das opiniões de gringos que passam uns meses ou poucos anos vivendo no Brasil”. Vamos lá...



1)            Os gringos raramente constroem redes sociais extensas ou profundas com brasileiros quando estão aqui. Tipicamente, seus interlocutores nativos são das famílias de seus parceiros amorosos ou, as vezes, do trabalho. 

2)            Geralmente, os gringos interagem com o Brasil de uma maneira agressiva e oportunista. Ou seja, estão aqui em função de projetos pessoais que querem avançar, as vezes a qualquer custo. O Brasil, enquanto país e sociedade, tem uma certa utilidade enquanto possibilita ou avança esses projetos: na medida em que os impeça, é inadequado. 

3)            Os gringos adoram criticar a falta de consciência brasileira para com o meio ambiente, principalmente para evitar pensar sobre como suas sociedades de origem também estão acabando com o planeta. Frente aos desastres do British Petroleum no Golfo de México e do Freedom Industries em Virginia Ocidental, para não falar dos escândalos de fracking e do projeto tar sands e a  destruição ecológica incipiente da Grande Barreira do Coral,  é surpreendente que qualquer britânico, canadense, australiano, ou americano poderia avaliar o Brasil como mais displicente com o meio ambiente que seus países de origem.  

But hey: the Amazon.

4)            Os gringos – e particularmente os americanos –  toleram uma quantidade incrível de corrupção nos negócios e governo. Diferente dos brasileiros, porém, recusam admitir ou criticar isto. Dessa maneira, atos que dariam em escândalos e prisões no Brasil – o mensalão, por exemplo – são legitimizados como “business as usual” em seus países de origem.

5)            As mulheres gringas são excessivamente obcecadas com seus corpos e são muito críticas (e competitivas com) as outras. Pior: gostam de presumir que “seu” feminismo é o mais avançado e igualitário do mundo, mesmo quando fazem tais coisas como criminalizar a prostituição, prendendo mais de 60.000 mulheres por ano pela venda do sexo (como é o caso dos EUA).  Precisam construir uma mulher “terceiro mundista objetificada e infiorizada” para puder se sentir superior frente ao machismo e sexism que infiltram suas próprias sociedades.
6)            Os gringos, principalmente os homens, são altamente propensos a casos extraconjugais. Se duvida disto, sai andando por nossas praias e veja quantos lobos solitários estrangeiros – devidamente casados em seus países de origem – estão a espreita.

7)            Os gringos, especialmente as pessoas que vendem novos produtos e tecnologias, são geralmente malandras, preguiçosas e quase sempre desonestas. 

8)            Os gringos são muito expressivos de suas opiniões negativas a respeito do Brasil e dos brasileiros, com quase total desrespeito sobre a possibilidade de ferir os sentimentos de alguém. 

9)            Os gringos têm um sistema de classes muito proeminente. Os ricos têm um senso de direito que está além do imaginável. Eles acham que as regras não se aplicam a eles, que eles estão acima do sistema, e são muito arrogantes e insensíveis, especialmente com o próximo. Como prova disto, é só dar uma olhada nas penalidades sofridas pelos chefes das maiores instituições financeiras dos EUA e da Europa Ocidental frente aos desastres econômicas de 2008-2009, causados por suas práticas desonestas. Compare essas a penalidade que um jovem negro sofreria em Califórnia se fosse preso assaltando  um posto de gasolina por USD 20. Ahn, a famigerada justiça do país que é o maior estado policial de todos os tempos, os EUA!

10)         Gringos constantemente não leiam, escutam, ou pensam sobre quaisquer opiniões que não são formuladas dentro de seus próprios países. A história, para eles, simplesmente não inclui 90% da raça humana.
 

Agora, se você anda furioso com essa lista de preconceitos, ótimo. Sugiro que você aplica o mesmo raciocínio à lista original.

A verdade da situação é essa: qualquer generalização que você pode fazer de uma sociedade de 200 milhões (ou um bilhão... ou um milhão...) de indivíduos vai ser altamente condicionada á milhões de exceções. Mas o mais que você amplia essas observações, o mais que elas podem referir a qualquer lugar, qualquer povo, qualquer tempo.... Dizer que a mulher brasileira vive numa regime de beleza filha-da-puta e repressora, que prega o moralismo falso, é mais que correta. Onde eu salto do Trem da Alegria, porém, é quando essa é situada como pior (ou melhor) que a situação das americanas.

Ou seja, pimenta nos olhos dos outros refresca, neh?

Criticar os problemas de uma sociedade é uma coisa. Fazer isto com o claro intuito de sugerir que seu país de origem é superior vai além do etnocentrismo: é simplesmente ridículo.  Fala muito mais alto sobre as inseguranças e preconceitos da pessoa que cria a comparação do que sobre as duas sociedades comparadas.

Para com o Mr. X,  só posso falar que é triste que seu casamento acabou num divórcio. A causa dessa situação, porém (e dos três anos de vida que ele deixou em São Paulo) não é o Brasil.

E para vocês brasileiros que estão enchendo minha muralha de Facebook com as observações de Sr. X, como se estas fossem profundas ou originais, vai refletir um pouco sobre o que o dor de cotovelo é capaz de provocar numa cultura que não tem tradução adequada para a palavra “saudades”.



Wednesday, January 29, 2014

Ainda sobre Pete Seeger...





Mais uma de Pete Seeger.

Em 2009, foi convidado a tocar "This Land is your Land", de Woody Guthrie, na festa de inauguração de Barack Obama, junto com Tao e Bruce Springsteen.

"This land" tem uma históia estranha. Embora considerado por muitos americanos como o hino nacional alternativo dos EUA, música obrigatória em apresentações de colégio etc. e tal, também é uma música p'ra lá de censurada..

Guthrie originalmente escreveu a música com três versos que são vistos como ataques contra a propriedade privada e o governo americano. Mesmo hoje, são raramente cantados e os professores rotineiramente "esquecem" de ensiná-los a seus alunos:

    Nobody living can ever stop me,
    As I go walking that freedom highway;
    Nobody living can ever make me turn back
    This land was made for you and me.

    In the squares of the city, In the shadow of a steeple;
    By the relief office, I'd seen my people.
    As they stood there hungry, I stood there asking,
    Is this land made for you and me?

    As I went walking I saw a sign there
    And on the sign it said "No Trespassing."
    But on the other side it didn't say nothing,
    That side was made for you and me.


É ativismo demais para os sentimentos democráticos americanos, aparentemente.

No evento de Obama, porém, Pete e Bruce fincaram os pés e insistiram em cantar TODA a música, mesmo com os versos censurados.

Pete começa os versos censurados no 2:33 no vídeo e você pode ver ele claramente se deliciando com a situação. Dá para entender EXATAMENTE o que passou por sua cabeça neste momento:

"E aí, Woody? Imaginou um dia que eu estaria nas escadas do Lincoln Memorial, cantando 'This Land' interinho, ao convite do primeiro presidente negro dos EUA, justamente em sua festa de inauguração?"

É maravilhoso que Pete teve esse momento e que sua esposa Toshi (que morreu no ano passado) testemunhou o feito. Era uma reivindicação de tudo que Pete sustentava.

No 2:54 e 3:21, dá para ver a cara de sapeca dele enquanto ele dá a banana ao capitalismo frente ao Presidente.

(Obrigado, Bia Botafogo, por me lembrar deste vídeo.)

Tuesday, January 28, 2014

Lembrando Pete Seeger, 1919 - 2014



Por Thaddeus Gregory Blanchette 


Peter Seeger ergeu-se por 75 anos em cima da cena de música folclórica como um grande pinheiro de madeira vermelha. Andou com Woody Guthrie na década de ’40, desafiou Joe McCarthy nos anos ’50 e marchou com Dr. Martin Luther King nos ’60s. Suas músicas serão cantadas em todos os lugares onde o povo luta para seus direitos. We shall overcome.


Eu tive a enorme boa fortuna de ter encontrado Pete Seeger três vezes na minha vida.

A primeira vez foi em 1971, quando eu tinha três anos de idade. Minha mãe era aficionada de música folk norte-americana e me levou, junto com sua irmã e meus primos, a um pequeno festival onde Pete tocava ao lado de Peter, Paul & Mary. A memória dele cantando é uma das mais antigas que tenho. Após o show, fomos nós apresentar aos artistas e me lembro olhando para o rosto de Pete e pensando, “Que velhinho simpático!” Sua bondade e presença me marcaram profundamente, mesmo naquela tenra idade. Quando Pete te olhava, você sabia (como Harry Chapin comentaria mais tarde em sua música em homenagem ao Seeger, O Velho Folclorista (The Old Folkie)) que ele estava realmente presente. É uma sensação que tenho experimentado com poucas pessoas.

Eu nada sabia, na época, da história do homem.

O fato que Seeger cantava de graça para uma banda de alunos universitários e jovens era o resultado da cassação profissional que ele tinha sofrido por ter recusado testemunhar contra seus amigos e colegas do movimento comunista durante a caça de bruxas liderada pelo Senador McCarthy. Seeger, que tinha sido membro do Young Communist League em sua juventude, foi condenado a dez anos de prisão por esse “ultraje”, num país que se considerava (e ainda se entende) como a mais perfeita flor da liberdade e democracia.

A condenação foi revista, mas Pete foi colocado na lista negra das gravadoras, rádios e televisões dos EUA. Por causa disto, nunca lucrou com a explosão de popularidade da música folk nos anos 1960. Hoje, centenas de milhões de seres humanos conhecem músicas como “If I had a Hammer”,  “Turn, Turn, Turn”,“Where Have All the Flowers Gone?” e “We Shall Overcome”  graças a Pete, mas poucos conhecem o nome do homem que as colocou no repertório folk norte-americano. Bob Dylan, Joan Baez, Marlene Dietrich, The Kingston Trio e vários outros artistas faziam sucesso e ganhavam milhões cantando as músicas do Seeger. Pete, que vivia numa cabana que ele mesmo construiu, em cima do Rio Hudson no estado de Nova Iorque, pouco se importava com que outras pessoas poderiam considerar uma injustiça. Para ele, a música sempre foi a coisa mais importante.

Nascido em 1919 numa família tradicional calvinistade Nova Inglaterra, Pete Seeger seguia no ramo da família quando decidiu trilhar uma carreira dedicada à música e poesia. Seu pai, Charles Louis Seeger,  foi um dos fundadores de etnomusicologia – carreira ainda seguido pelo sobrinho de Pete, o antropólogo Anthony Seeger. Sua mãe, Constance de Clyver Edson, ensinava música na prestigiosa Julliard School enquanto sua madrasta, Ruth Crawford Seeger, é hoje considerada uma das compositoras modernistas mais importantes do século XX. Seu tio, Alan Seeger, foi um dos mais famosos poetas americanos da Primeira Guerra. (Eu precisava decorar seu poema, “I have a renedvous with death” no colégio).

Seeger estudava no Harvard, mas deixou a universidade para se dedicar à musica e à política. Envolvia-se profundamente com as lutas para justiça e democracia da década de 1940, formando parcerias com tais legendas da música popular americana como Woody Guthrie, Huddy Leadbelly e Lee Hayes. Ajudou fundar The Almanac Singers e The Weavers, dois dos grupos mais influentes da música folk dos EUA. Durante a Segunda Guerra, Seeger (assim como meu avô) treinou para ser um mecânico de aviões, mas (diferente de meu avô) gastou a maior parte de seu tempo cantando para as tropas. Existe uma foto maravilhosa dele tocando para uma platéia que incluía a Primeira Dama Eleanor Roosevelt  numa festa racialmente mista no Dia dos Namorados em 1944:


























Nos dias de Obama, tal coisa pode parecer absolutamente normal. Em 1944, porém, a segregação racial e as leis anti-miscigenação ainda vigoravam em 13 estados americanos. Pete conhecia pessoalmente muito bem o que isto queria dizer: casou-se com a japonesa-americana Toshi Aline Ohta em 1943, um ano em que os americanos de descendência nipônica apodreciam em campos de concentração como resultado da política racista de “segurança” inaugurada pelo governo federal após o ataque do Império do Japão ao Pearl Harbor. (A história da família de Toshi é tão colorida quanto a do Pete: seu avô tinha sido tradutor de textos marxistas no Japão, fato que acabou no exílio de seu filho, o pai de Toshi.)

Era justamente essa incapacidade de se calar frente à injustiça – e particularmente às injustiças raciais – que colocou Seeger e seus colegas na mira de Senador McCarthy na década de 1950. Em 1953, quando as músicas “comunistas” dos Weavers foram proibidas nos rádios americanos, Pete tinha 34 anos de idade e já estava avançada em sua carreira. Sua voz não voltaria às transmissoras até mais ou menos a mesma época em que eu o conheci pela primeira vez.

Em 1971, quando o encontrei pela primeira vez, Pete Seeger tinha 52 anos de idade e ganhava a vida tocando em universidades, cafés e pequenos festivais. Já era considerado por todos uma éminence grise da música folk norte-americana, fato retratado na música a sua homenagem que Harry Chapin gravou em 1979
 
Ele é o homem com o banjo e a guitarra de 12 cordas
Cantando as músicas que nos contam quem nós somos.
Quando você olha em seus olhos
Você sabe que alguém está lá.

Faz 40 anos ele está na luta
Carregando o sonho pois o Woody já se foi
Ele é a última voz cantando aquela música “Bound for Glory”
E se você não o conheça, é bom conferir 
Ele é o homem que botou o significado nos livros de música
O mundo pode estar cansado, mas Pete continua forte.



Ironicamente, Harry Chapin morreria dois anos mais tarde, num acidente de trânsito. Pete, porém, ainda tinha 33 anos de vida para sua frente.



Durante minha infância e juventude, as músicas de Pete Seeger formaram uma trilha sonora constante, tocando em contraponto ao Hino Nacional. Eram as músicas que cantávamos nos acampamentos, nos protestos, nos bares e nas ruas. Foi o Pete que me ensinou a cantar “Guantanamera” e me apresentou a obra de José Marti.   Foi Pete que me catequizava  sobre os sindicatos.

Cada vez que Seeger passava pelo Wisconsin, geralmente acompanhado pelo filho de Woody, Arlo Guthrie, eu fazia questão de ver seus shows ou pelo menos ouvi-los no rádio universitário da minha cidade.  Mas só foi em 1986 que eu me encontrei com ele novamente.



Naquele ano, eu participava de uma marcha transcontinental que partia de Los Angeles, rumo ao Washington D.C., militando em favor do fim dos testes nucleares. Levava 8 meses, andando 20 quilômetros por dia, em sol, chuva e neve. Pete alcançava a Marcha em Iowa. Ele andava com a gente, tocava para nós nas paradas, comia nossa comida terrível sem reclamar, cagava em nossos banheiros químicos e, ainda assim, no final do dia, fazia show beneficente para arcar fundos para a Marcha.


Tudo com 67 anos de idade.

Um amigo meu descrevia com precisão uma típica interação com Pete na Marcha:


Eu tinha andando quilômetros na chuva, estava insuportavelmente frio e eu estava de saco cheio. Finalmente cheguei no ponto de almoço da Marcha e a única coisa que tinha preparada lá era umas fatias de pão duro e uns cachorros quentes, todos quebrados. Neste exato momento, quando eu ficava lá lamentando em silêncio, chegava Pete Seeger. Sem piscar os olhos, ele pegou uma fatia de pão, botou uma salsicha no meio, e saiu andando, rindo com alguns outros marchadores, para tocar seu banjo embaixo das arvores. 




































Seeger voltava a acompanhar a Marcha em várias ocasiões. Quando entramos em Nova Iorque, fazia questão de navegar seu saveiro, o Clearwater, embaixo da ponte George Washington enquanto passávamos por cima. Também fez um show de despedida para a gente em D.C.















O Clearwater acompanhando a Marcha no Hudson, 1986

A terceira vez que encontrei Pete foi o mais triste, pelo menos para mim.

Na década de ’90, o governo americano aparentemente tentou reabilitar Seeger como uma espécie de tesouro nacional. Em função disto, ele fez uma turnê pelo Brasil, patrocinada pela Embaixada dos EUA. Lembro que ele foi ao programa do Jô Soares, que o tratou como realeza visitante. Jô fazia questão de informar os telespectadores sobre a importância do Pete e avisou ao Brasil inteiro que seu show no Memorial da América Latina seria de entrada franca. Fez de tudo para alavancar interesse neste homem, tão importante para a música popular americana e, no entanto, quase desconhecido no Brasil.

Na noite seguinte eu, Katia Campos Mendes e nosso filho Leonardo fomos para o show no auditório cavernoso do Memorial... e descobrimos que éramos três entre os somente 30 espectadores que vieram assistir Pete.

Pete levava tudo numa boa e fez um show íntimo, cobrando pessoalmente todos os membros da platéia para que eles aprendessem a cantar as músicas. “Aqui não é uma aula de ethnomusicologia,” brincava.  “Hoje, vocês vão cantar!” Depois, ele reunia todos no camarim  e bateu papo conosco  por mais de uma hora.

Nesta ocasião, Pete estava acompanhado por seu neto, Tao Rodriguez-Seeger, que passou vários anos de sua infância em Nicaragua e sabia cantar em espanhol. Tao e Pete, cientes do crescente influência hispano-falante nos EUA, estavam incorporando cada vez mais músicas folk naquela língua a suas performances. Então foi assim, nos meus 28 anos, que Pete e Tao me ensinaram a cantar “De Colores” e me apresentaram à obra do cantor argentino León Gieco.

Pete nunca parou de levar a música do mundo aos EUA e vice versa.
Pete também nunca parou em seu ativismo. Lutou 40 anos para tentar despoluir o Rio Hudson. Militou contra todas as guerras americanas da segunda metade do século XX. Foi oponente feroz do racismo, em todas suas manifestações. Em 2011, com 92 anos de idade, ele se aliou ao movimento Occupy em Nova Iorque, marchando de Broadway para Columbia Circle com Tao, Arlo Guthrie e muitos outros músicos, mais milhares de apoiadores, num evento apelido posteriormente de  “A Marcha Pete Seeger”:


























 
Em 27 de janeiro 2014, o velho folclorista finalmente se foi, deixando um vazio irreparável nos corações de todos que conheciam o homem e sua música.

Sou cínico e cético com respeito a meu país de origem. Mas nos momentos mais sombrios, lembro que embora os EUA são capazes de fazerem grandes injustiças e maldades no mundo, também podem criar pessoas como Pete Seeger e toda sua maravilhosa família. Sua música e seus pensamentos ficarão para catequizar gerações futuras com suas mensagens de esperança, amor, justiça e luta. Mas nos que tivemos a boa fortuna por conhecer Pete Seeger, mesmo que brevemente, sempre sentiremos a falta desse melhor exemplar de um verdadeiro humanitário.

Coda
Para fechar essa breve homenagem ao Pete, e ilustrar bem seu alcance mundial, segue uma música que ele gravou no ano em que eu o conheci pela primeira vez, “Rainbow Race” (“Raça Arcoiris”). A canção virou uma música infantil popular em Noruega. Em 2011, 40.000 noruegueses se juntaram no centro de Oslo para marcar seu repúdio aos atos do racista Anders Berhring Breivik, que matou 77 pessoas num acampamento. Breivik odiava a música, que ele taxou como “lavagem cerebral socialista”. O prefeito de Oslo classificou o eventocomo “uma verdadeira manifestação da cultura norueguesa”.


Rainbow Race (Raça Arco-íris)
Pete Seeger, 1971

Um céu azul acima de nós
Um mar tocando todas nossas praias
Uma terra tão verde e redonda
Quem podia pedir mais?
E pelo fato que te amo
Tentarei mais uma vez
Para demonstrar para minha raça arco-íris
Que é cedo demais para morrer.

Tem gente que quer ser que nem o avestruz,
E enterrar suas cabeças na areia.
Tem gente que espera que os sonhos de plástico
Podem desgarrar todas aquelas mãos cobiçosas.
Alguns esperam tomar o caminho fácil:
Veneno e bombas. Eles acham que necessitamos disto.
Mas não tem como matar todos os descrentes
Não tem um caminho curto para a liberdade.

Vai contar para todas as criancinhas.
E todos os mães e pais, também.
Essa é nossa última chance a apreender compartilhar
O que foi nos dado.