por Ana Paula Silva
Uma campanha do Ministério da Saúde sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis voltadas para as prostitutas em comemoração ao Dia Internacional das Prostitutas causou celeuma e polêmica. Todos os seus idealizadores foram demitidos ou constrangidos a deixarem o cargo por pressão da bancada evangélica. Acredito que esta primeira ação é esperada, apesar de inaceitável, por parte do governo: desqualificar questões de saúde pública para valorizar os preconceitos e achismos dos defensores da bíblia.
No entanto, um cartaz em particular, provocou reações adversas não apenas em evangélicos, mas em pessoas que se entendem como defensoras de direitos e contra qualquer forma de discriminação. A imagem de uma mulher sorrindo com a frase "Eu sou feliz sendo prostituta" tem sofrido restrições e está sendo acusada de "glorificar", "glamourizar" uma profissão que, segundo estas pessoas, "objetifica", "mercantiliza", trata a mulher como "coisa" e, portanto, uma carreira não digna que qualquer pessoa possa querer na vida.
Frases como "sou contra a prostituição, mas a favor das prostitutas", "este mercado pode ser bom financeiramente para estas mulheres, mas elas precisam ter oportunidades melhores na vida", "como alguém pode ser feliz, fazendo um trabalho tão degradante e imoral como estes?", "não podemos deixar que mais meninas sigam este caminho. Elas precisam de uma vida melhor."
Assim como outros pesquisadores, tenho estudado seriamente o mercado do sexo faz algum tempo e assim, como eles, tenho percebido que as frases ditas acima, são extremamente carregadas de preconceitos que ajudam a legitimar ainda mais o estigma que este grupo social vem sofrendo ao longo de décadas, pois acreditam que a manutenção de um mercado semi-legal, não-regulamentado é a solução para extirpar um "mal" da sociedade. Não adianta achar que ser a favor das prostitutas, mas contra a prostituição garantirá direitos a estas pessoas. Como legalizar a prática e criminalizar o mercado? É minimamente uma incoerência e não resolve os problemas e estigmas que este grupo sofre.
Mas a questão persiste: por que uma mulher, líder das prostitutas, num cartaz dizendo "sou feliz sendo prostituta" causa tanto mal-estar até mesmo nas pessoas que se autodenominam "libertárias" e a favor da construção de "igualdades"?
Acredito que, infelizmente, ser prostituta foi tão estigmatizado (e a ciência colaborou enormemente para isto) que não se consegue vislumbrar que as pessoas que vivem disso podem ser agentes e cidadãs. Aprendemos que alguém que é prostituta por si só está numa condição de inferioridade tão grande que todas as suas capacidades de discernir sobre o que é certo ou errado foram retiradas. Por isto continuam lá. De repente ter alguém fora desse padrão incomoda e parece estar "glamourizando" uma função que sabemos ser de antemão degradante.
Sinceramente o que tenho percebido, e que toda esta celeuma causou, inclusive, entre meus colegas de profissão e militância, é que os eficazes instrumentos de regulação sobre o sexo ainda perduram e se acredita piamente na naturalização do que seria sexo "ruim" e sexo "bom". De que deve existir uma "normalização" das práticas sexuais e as "aberrações" devem ser minimamente controladas.
O que afirmo se torna interessante quando pensamos em quem são os alvos desta "normalização": as mulheres. Nenhuma delas pode em sã consciência decidir ser puta e, independentemente, de sua função serem felizes. As mulheres não podem escolher o que fazer com o seu corpo, em relação ao sexo, particularmente se não é entendido como "normativo". "Alugar serviços sexuais" há de ser um vilipendiamento do seu corpo, torná-lo mercadoria exposta, mesmo que seja de sua escolha.
O campo da prostituição é diverso, complexo e não podemos afirmar que existe um tipo de prostituição. Existem muitos tipos e pessoas envolvidas de todas as classes e cores. É uma simplificação acreditar que só pobre se prostitui, no entanto, é interessante refletir sobre as várias trocas afetivo- sexuais que são vistas e entendidas como "prostituição". Determinadas trocas se envolvidas por pessoas de classes sociais mais abastadas podem ser entendidas como "namoro". São até vislumbrados como relacionamentos de "interesse", mas não merecem as mesmas atenções das forças de segurança que prendem mulheres e violam seus direitos porque são taxadas de "putas".
Enfim, o que tenho estudado demonstra que a categoria "puta" é acusatória e é aplicada quando um certo tipo de mulher de classe e cor está envolvida e por isto, MERECE apanhar ou ser "controlada" e incentivada a procurar empregos "dignos", mesmo que boa parte delas tenha fugido dos entendidos empregos "dignos" que as pessoas teimam em achar que elas devem desempenhar.
Contudo, afirmar isto, é incentivar, glamourizar, glorificar a prostituição, como tenho lido em posts aqui no FB. Desde quando afirmar que estas pessoas precisam e devem ter direitos reconhecidos é glorificar a prostituição?
Então concordamos que para estas pessoas serem vistas como cidadãs elas precisam estar caídas na sarjeta, decadentes e reconhecerem que foram meninas más por escolherem uma profissão aviltante? Mantendo a prostituição na semi-legalidade é a solução?
Enfim, acredito que muito ainda se precisa pensar sobre isto, mas o que me choca é o nao reconhecimento de pesquisas que já falam isto muito antes da minha entrada neste campo e ainda ouvir comentários de que não existem pesquisas sérias sobre o tema. Amigxs existem pesquisas sérias no Brasil e em outros lugares no mundo sobre o tema, o problema é que não compactuam com os preconceitos vigentes e as soluções abolicionistas para acabar com este "mal".
Tornar a prostituição mais ilegal e criminalizada não resolve e ajudamos o Estado a exercer controle sobre as populações enxergadas como "indesejáveis" e, portanto, passíveis de controles e restrições quanto aos seus direitos.
Este assunto me tocou profundamente e acho que precisamos ampliar o debate. É urgente e premente. Desculpem o longo post.