Felipe Melo: um típico brasileiro atavico...?
Perdemos mais uma Copa do Mundo e obviamente temos que caçar os culpados, pregá-los a fogueira e queimá-los vivos com requintes de crueldade. Isto significa linchamento moral, verbal e, se tiver uma oportunidade, agressão física, por que não? - e o máximo de execração pública nos mais diversos veículos de comunicação.
Isto é uma “tradição brasileira” e faz parte do nosso calendário de malhação do Judas fora de época. De quatro em quatro anos, se a seleção canarinho perde uma Copa iniciamos todo o processo de achincalhamento, dos mais odiosos, para que depois possamos sair com a alma lavada. Todas as que ousaram perder uma Copa passaram por isto. As de “antigamente” tiveram a seu favor o fato dos meios de comunicação se resumir aos jornais e mais tarde a televisão. As de “hoje” convivem com uma rede quase infinita de informações e que para a nossa sublime posição de carrascos podemos humilhá-los das mais diferentes maneiras. Vitória da tecnologia!
A seleção da vez é a de Dunga que com seus “meninos de Cristo” está metodicamente passando pelo o ritual do linchamento público e já com a fogueira armada para que seu nome vire apenas pó na história. Diga-se de passagem, nada muito diferente do que aconteceu em Copas perdidas anteriormente.
A seleção perdedora da vez, no entanto, não está sendo criticada baseada nos dias de glória dos “timaços” de 58-62-70, a tríplice aliança dos títulos que para alguns mais exaltados e amantes do “verdadeiro futebol” e do “futebol-arte” representam os únicos títulos que o Brasil ganhou jogando com decência.
O tetra e o penta sempre são tratados como títulos menores de um grupo de jogadores medianos e ruins que estavam em busca do futebol de resultados e cravaram a morte do “futebol-arte” em nome do “futebol-força” ou a “europeização do nosso futebol” que representa o esporte praticado de maneira “feia, sem a ginga e malemolência” de outrora, características, segundo os super entendidos e adeptos da sociobiologia, qualidades inatas ao povo brasileiro e, portanto, o feijão com arroz do “futebol-arte”.
No cardápio atual, soma-se, um item novo ao linchamento. A comparação com a “Seleção Brasileira de Baladeiros” de 2006. Aquela chefiada por Carlos Alberto Parreira que ficou conhecida como o “time boate”. Jogadores “estrelas, beberrões, cheiradores e farristas” que foram a Alemanha festejar e mostrar ao mundo toda a nossa “malandragem” e muita irresponsabilidade. Na volta para casa, um tsunami de críticas quanto a este pouco profissionalismo e disciplina. Eles escancararam ao mundo a nossa porção “vira-lata”, aquele que, por fora até parece bonitinho, mas como Gilberto Freyre descreveu em “Casa Grande e Senzala”, quando se observa bem, não passávamos de “marinheiros mulatos e cafuzos” com um aspecto medonho, resultado de uma “mistura maldita” e fadada a contínua “degeneração”. Era preciso mudar.
Para isto, era necessário instaurar a “ordem” para ocultar o nosso “viralatismo”. Como Batista de Lacerda nos ensinou, a mistura não é todo ruim, desde que o resultado dela, “o povo brasileiro” seja disciplinado, controlado e saneado. Estava aberta a temporada de “saneamento e limpeza” dos vira-latas.
Para isto convocaram um disciplinador, Carlos Caetano Bledorn Verri, o Dunga . Ex-jogador de futebol conhecido mais por sua truculência em campo de que seus méritos como atleta. Teve altos e baixos na carreira. Em 1990, foi responsabilizado pelo mau futebol apresentado e conseguiu alguma redenção em 1994 com a conquista do Tetracampeonato. Feito que o Brasil não fazia há vinte anos. Desta vez, o ex-atleta foi chamado para colocar freio nos trilhos e teve “carta branca” para modificar a seleção do jeito que quisesse, desde que levando em consideração o processo de saneamento, disciplinarização e busca de profissionalismo extremo que faltou a seleção de “baladeiros” da Copa anterior.
Ao observar os jogadores de futebol brasileiros, Dunga teve que lidar com dois personagens com quem insistimos enquadrar os meninos brancos, mestiços, negros e pobres que sonham com uma vida digna para ele e suas famílias ao escolherem seguir a carreira do jogador de futebol: os “bad boys” e os “atletas de cristo”. Estes personagens caricatos são a garantia da diversão de uma sociedade que historicamente não está acostumada a ver os negros, brancos e mestiços pobres como cidadãos que podem alçar ao sucesso e a fama com dignidade. Este grupo de pessoas, apesar do dinheiro, é fadado, no imaginário social, aos quartos de empregadas, a limpeza das latrinas e a caixas de supermercado e lojas de onde nunca deveriam ter saído. Como num script de novela construímos estes personagens e como uma “profecia que se cumpre” cada um destes meninos ocupam seus personagens nas tramas de suas vidas. O "bad boy" pode virar um "atleta de cristo" e vice-versa? Pode. Aliás, a troca de papéis garante a audiência desta novela da vida real.
Em tempo de “saneamento e disciplinarização” e aversão aos “baladeiros” de 2006, Dunga fez sua escolha: banimento dos "bad boys" e ascensão dos “atletas de cristo”. Seguindo à risca o combate ao atavismo brasileiro, instaurou-se um regime autoritário e de exército muito semelhante ao que foi feito na preparação da Copa de 1958 que ficou conhecido como “Plano Paulo Machado de Carvalho” e que incluía um regime disciplinar extremo àquela seleção que colocou Pelé (versão clássica do “atleta de cristo” contemporânea) e Garrincha (versão clássica do "bad boy" atual) a irem para o banco de reservas para combater o ativismo próprio do “brasileiro degenerado”. Participaram do campeonato no momento em que se acreditou que estes dois personagens estavam devidamente “saneados e controlados”.
Sem maiores comparações em termos técnicos, mas apenas em termos de discursos o que se buscava em 1958 era semelhante ao que se procurou em 2010. Comprovar que os “vira-latas degenerados” sob uma forte disciplinarização e profissionalismo poderiam alcançar o sucesso. Com uma brutal diferença, 1958 saiu vitoriosa e 2010, não. E, somado, a Copa atual, o técnico brasileiro resolveu comprar briga com a imprensa brasileira ao não permitir que nenhum tipo de distração atormentasse e tentasse o sono dos “atletas de cristo”. Como todos sabem, meninos negros, mestiços e brancos pobres são os mais suscetíveis a corrosão da degeneração e mais passíveis a deixarem a porção vira-lata medonha incontrolável e degenerada aflorar com maior rapidez. Dentro desta “filosofia”, Dunga proibiu sexo, drogas, rock e aparições nas mídias. Apenas, foram mantidas as orações em campo e fora dela para demonstrar que ali estavam “os atletas de cristo”, devidamente saneados e controlados rumo ao sucesso. Ele não veio e repetiu-se o mesmo fiasco da “seleção de baladeiros” de 2006.
Agora como numa novela que não deu a audiência necessária é preciso mudar o script. Entoam as vozes de que devemos trazer de volta à cena os "bad boys", os exímios “baladeiros, cheiradores, farristas, macumbeiros e maconheiros” para agora à la Gobineau, comprovarmos ao mundo que um pouco de “sangue bárbaro” nesta “mistura maldita” é o que nos faz ser “diferentes” positivamente da chatice monocórdia da “pureza racial”. Aqui está o segredo do nosso sucesso, do “futebol-arte”, da alegria e felicidade inzoneira. Seguimos em busca desta “fórmula científica” que produza a “mistura ideal” ou o “tipo nacional” adequado: aquele que é saneado e controlado, e que pode ser libertado da degeneração. Ele pode ser branco, afro-brasileiro ou afro-indígena brasileiro, etc, etc, etc, dependendo das “ideologias raciais” que se quer seguir, desde que, tais discursos consigam expurgar “o vira-lata” e a “mistura maldita” que habita em cada um de nós e que dolorosamente pode ser escancarada ao mundo a qualquer momento seja com os “bad boys”, seja com “os atletas de cristo”.
Este parece ser o drama inscrito nas seleções de 2006 e 2010 que pode ser entendido como um drama nacional. Como chegar a esta "fórmula científica" exata que expurgue de vez “o vira-lata”? Desde que as teorias raciais fizeram moda em fins do século XIX no mundo “civilizado”, para fazermos parte de tal “mundo”, estamos à procura do tipo nacional adequado. Para isto, financiamos projetos “raciais” mirabolantes que nos livrem da degeneração. Parece que sem muito sucesso pelo visto, pois sempre estamos em busca de um novo discurso racial que promova a “cura” definitiva deste mal à brasileira.
Para finalizar, não tenho respostas prontas, as linhas que escrevi são mais divagações e dúvidas que surgiram diante de mais um linchamento em praça pública dos jogadores de futebol e comissão técnica que perderam uma Copa do Mundo e que acredito que, só pode ser entendido a partir de uma análise do que significa esta busca incessante ao tipo nacional adequado brasileiro.